sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Quem não ama o bem?

Ando com preguiça de postar, porém, (re) lendo alguns textos, cronicas e outras estórias, me lembrei de uma que adoro, foi uma grande surpresa quando li, já conheço o texto há uns 8 anos e releio sempre. É longo, mas pra quem tiver saco, vale a pena, pois é fantástico. Também, fala do meu momento atual. Para quem for ler...aproveitem. O text é de Leonid Andreiv.
Caso queiram falar , discutir sobre, fiquem a vontade.
Até a próxima!
A CONVERSÃO DO DIABO
QUEM não ama o bem?
Uma vez, um diabo já entrado em anos, e a quem tinham
apelidado, no inferno, de Narigudo, sentiu, inesperadamente, cer.
ta inclinação à virtude. Entregara-se, na sua mocidade, como
todos os diabos, a insignificantes proezas diabólicas, mas, com
a idade, tornara-se razoável, um tanto cansado do seu ofício.
Embora gozasse de ótima saúde, os excessos juvenis quebra.
ram-lhe um pouco as fôrças, e éle já não sentia entusiasmo algum
pelas tolices da mocidade. Cada vez sentia mais acentuada
propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os
diabos) ; dotado de espírito firme e esclarecido, embora um tanto
metafísico, gostava de filosofar. Acabou por perder a fé na
perfeição do inferno e nos costumes diabólicos. Enfadava-se principalmente
nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa
a desempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais
que era celibatário.
Para lutar contra essa situação que tanto lhe perturbava o
espírito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vêzes de ofício.
Instalou-se, inicialmente, como diabo tentador - para muito
tempo e de maneira definitiva - numa igrejinha católica de
Florença. Ali, segundo suas próprias palavras, saboreou pela
primeira vez o repouso de espírito. Ali principiou, igualmente,
sua conversão.
A igreja era muito pequena, e êle tinha pouco trabalho.
As míseras velhacadas que tanto agradavam aos diabos jovens
- apagar as velas, fazer com que o sacristão caísse ou que
as velhas, enquanto rogavam a Deus, pensassem coisas escabro.
sas - não o atraíam. Pelo contrário, chegavam a causar-lhe
engulhos. Quanto às tratantadas importantes, não se oferecia
oportunidade para elas. Todos os paroquianos eram pessoas mo.
destas, que dificilmente se deixavam tentar. Nem o ouro, que
nunca haviam visto; nem o amor passional, que jamais conheceram;
nem os orgulhosos sonhos de ambição, completamente
estranhos à sua natureza, podiam turbar a paz de suas almas
superficiais, razão pela -qual todos os esforços do diabo
eram inúteis.
Quanto aos pecados insignificantes, os fiéis entregavam-se
a êles de per si, sem necessidade de serem tentados pelo diabo,
e êste não precisava quebrar a cabeça para inventar coisa al
guma, mesmo porque o número dos pequenos pecados é muito
reduzido.
A princípio quis tentar o pároco em pessoa, mas tôdas as
suas tentativas fracassaram; o pároco era um velho já desdentado,
um tanto volvido à infância novamente, e puro como uma
donzela. Sòmente conseguia fazê-lo esquecer, algumas tardes,
as palavras de sua oração, substituindo-as por outras, ou comer
carne nos dias de jejum, ou então dormir até muito tarde, faltando
à missa da madrugada. Mas o diabo sentia muito bem
que tudo isso não passava de pecadilhos exteriores e que semelhantes
meios não bastam para a perdição da alma de um
crente.
Pouco a pouco começou a cansar-se do seu ofício, pondo
no trabalho cada vez mais indiferença e formalismo. Por descargo
de consciência contava de fugida a uma velha ajoelhada
diante da Virgem uma anedota escabrosa, cuspia duas ou três
vêzes num canto da igreja, ou fazia com que o velho sacerdote
confundisse as palavras da missa sempre no mesmo ponto. Depois
de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no
lugar favorito, à sombra de uma coluna, para acompanhar, devotamente,
num breviário furtado, as palavras do santo sacrifício.
Mas êsse passatempo, embora agradável, era contrário à
natureza ativa do diabo. Para não permanecer ocioso, começou
paulatinamente a trabalhar. Tornou-se, por vontade própria, uma
espécie de sacristão-ajudante da igreja. Varria-a de manhã, limpava
o metal das portas, espevitava os candeeiros durante a missa
e, junto aos demais paroquianos, acompanhava o côro, can-
tando em voz de falsete o "Ora pro Nobis". Se lhe acontecia
entrar na igreja pela porta da ria, molhava suas garras no
vasinho de água benta, benzendo-se com ela. Quando todos os
crentes se acercavam do pároco para que os abençoasse, acom.
panhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus hábitos
diabólicos.
Durante as raras visitas ao inferno, onde precisava apresentar
informes acêrca de suas atividades (os quais, por sua
vez, eram arquifalsos, como todos os informes dos diabos a
Satanás), nosso diabo sentia aumentar cada vez mais seu asco
pelo inferno, e por seus costumes, sua barulheira infernal, sua
sujeira e desordem. As bruxas gritadoras, que antigamente lhe
pareciam tão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão
aversão, e êle se divertia prendendo-lhes as vassouras com a
porta, observando depois o terror e as torturas dessas desventuradas,
que procuravam inutilmente livrar suas vassouras de tal
apêrto.
No inferno todo o mundo mentia e rementia sem cessar.
Satanás mentia mais do que todos juntos, e o nosso diabo, que
já havia perdido os hábitos do ambiente, sentia-se enfêrmo, ansioso
por sair dali, para respirar um pouco.
Após uma de suas visitas ao inferno, voltou com particular
satisfação à tranqüila igrejinha e, durante dois dias e duas noites,
dormiu como um justo atrás da coluna. Quando despertou,
disfarçou-se de homem, dirigindo-se ao confessionário,
onde se achava o pároco, pois era hora das confissões. 0 velho
sacerdote ficou estupefato, quando êste senhor desconheci.
do, já idoso, de expressão triste e aborrecida, nariz grande e
lábios finos enrugados, apresentou-se como diabo. Mas êste lhe
j urou, e o sacerdote acabou por acreditá-lo. Como curiosidade
perfeitamente infantil, pôs-se a interrogá-lo sôbre as coisas do
inferno. 0 diabo, porém, não mostrou desejo de querer falar
nelas.
- Ai! meu padre. Aquilo não é viver; é um verdadeiro
inferno...
- Bem, mas onde estão os teus cornos e os teus cascos?
- perguntou o padre, curiosamente. - E para que vieste aqui?
Para tentar-me, ou para arrepender-te? Se julgas que me tentas,
previno-te de que não o conseguirás. Eu, meu caro senhor, não
me deixo tentar!
0 sacerdote desatou a rir, dando palmadinhas amigas no
ombro do diabo.
- Pois apesar de tudo, logrei fazê-lo cair em tentação muitas
vêzes. Recorda-se da carne que comeu no último dia de
jejum?
- Que carne?
- Faz hoje quinze dias...
0 sacerdote ficou inquieto.
- Então, foste tu que me sugeriste essa idéia pecadora?
Ai!
meu
Deus!
Vai-te ...
vai-te ...
Não
te
quero
ver mais!
Põe teus cornos na cabeça, e vai-te ...
Se não
o fizeres, cha.
marei o sacristão.
- Vim para arrepender-me, e o~senhor me escorraça! . . .
- exclamou tristemente o diabo. - 1Vo entanto está escrito no
Evangelho que, se uma ovelha desgarrada . . .
- Mas, conheces tu o Evangelho? - perguntou assombrado
o sacerdote.
- 0 senhor pode examinar-me - respondeu orgulhosamente
o diabo.
- Impossível.
- Interrogue-me, e verá.
- Eis uma surprêsa! Vamos à minha casa, e ali te examinarei.
Não convém que continues neste santo lugar... Que
coisa extraordinária! Um diabo que conhece o Evangelho! Vamos
para casal...
Durante tôda a noite, o pároco, em sua casa, examinou o
diabo e cada vez mais se assombrava.
- Tu és um verdadeiro sábio em questões religiosas! Realmente!
Porventura as estudaste?
- Um pouco - respondeu modestamente o diabo.
Apesar dessa modéstia, conservava sua dignidade; não se
humilhava, nem mostrava demasiada afetação. Via-se logo que
era um diabo sério, ponderado e judicioso. Não se orgulhava
dos seus conhecimentos, e por isso agradava mais ao velho sacerdote.
- Afinal - perguntou-lhe o padre - que desejas?
Então o diabo caiu de joelhos, exclamando:
- Ensine-me, meu padre, a praticar a virtude. Sinto grande
desejo disso. Eu não posso viver sem praticar a virtude,
porém não sei como fazê-lo. Quanto a Satanás e a todos os
misteres diabólicos, renuncio a êles para sempre.
E, com o fito de confirmar suas palavras, o diabo cuspiu
desdenhosamente três vêzes seguidas.
0 pároco, então, bateu amigàvelmente no ombro do diabo;
êste afastou-se um pouco, pois não lhe agradava que o tratassem
com demasiada familiaridade, e perguntou insistentemente
e com melancolia na voz:
- Meu padre, vai o senhor ensinar-me a praticar a vir.
tude?
- Já o veremos! É preciso, antes de mais nada, começar
por ler as obras dos santos. Tu conheces bem a Bíblia, mas
isso só não basta... Vai passear um pouco... Enquanto passeias,
far-te-ei uma lista do que deves ler.
Quando o diabo ia saindo, o sacerdote, que contemplava
curiosamente suas largas espáduas, perguntou-lhe:
- Ouve, meu amigo... Estás sempre assim?
- Que diz o senhor?
- Falo da tua aparência... Tens um aspecto estranho...
Dir-se-ia que comes pouco, e te entregas sempre a tristes reflexões...
Que talvez não estejas sempre assim!... Se podes
tomar outra forma, mostra-me ...
Embora seja tão velho nunca
vi diabos...
Mas o diabo não lhe quis dizer a verdade.
- Não, estou sempre assim - foi a resposta.
- Verdade? . . .
Tanto melhor.. .
Pois olha: vai dar uma
voltazinha, enquanto eu trabalho, para o teu bem... Embora
tivesse dito que és um sábio, na realidade, meu amigo, ainda
te falta muito... muito...
- 0 que mais me interessa é aprender a praticar a virtude.
Ensinar-me-á o senhor?
- Sim, sim... - disse o velho sacerdote, tranqüilizando-
o. - Lerás muitos livros, e aprenderás tudo . . . Não tenhas
mêdo . . .
Durante dois anos o diabo estudou do primeiro ao último todos
os livros que o sacerdote lhe dera, esforçando-se por encontrar
nêles resposta à pergunta que o perturbava. Em que consiste
o bem, e como fazê-lo para que não se transforme no mal?
Há muito tempo que conhecia a língua hebraica e agora estudou
também o grego, para poder ler os livros religiosos não
traduzidos, mas no próprio original. Comparou os textos procurando
os erros que tinham escapado aos outros, fêz vários
descobrimentos e chegou mesmo a criar novos esquemas religiosos.
Com tudo isso, a saúde do nosso abnegado diabo começou
a ressentir-se sensivelmente. Emagreceu e, apesar de tudo,
não pôde encontrar resposta ao problema que tanto o preocupava.
Acabou por desesperar-se.
Ao fim de dois longos anos de sofrimento e trabalhos, apre.
sentou-se em casa do sacerdote. Despertando-o em plena noite,
gritou-lhe:
- Salve-me, meu padre! . . .
- Vamos...
vamos! . . .
que aconteceu? - perguntou o
sacerdote espantado. - Que te sucede agora?
- Li todos os seus livros, e continuo tão ignorante como
antes, a propósito de tudo quanto se refere ao bem. Salve-me,
meu padre! Eu não posso viver assim...
- Estás certo de que lêste todos os livros? Tens tão pouca
paciência!
- Todos, meu padre!
Agorq, mesmo terminei o último.
Desgraçadamente, para mim, tenho um espírito curioso, diabólico
e incapaz de suportar contradições, e os seus livros estão
cheios delas...
0 sacerdote moveu a cabeça num gesto de reprovação.
- Isso é mau... muito mau! . . .
Ao invés de crer, não
fazes outra coisa senão criticar e procurar contradições. Satanás
te incita a isso.
- Que posso fazer? Não posso ser de outra maneira!
Não encontro nesses livros senão contradições. De um lado,
tudo é proibido; de outro, tudo é permitido. 0 que é bom segundo
um livro, torna-se mau, noutro. Por exemplo, para começar
dignamente uma nova vida, tinha a intenção de me casar
com uma mulher honrada, a fim de praticar o bem ao seu lado.
Mas depois de ter lido todos êsses livros, já não sei se o matrimônio
é um bem ou um mal.
- Aquêle que se sente capaz . . .
- Não se trata disso. 0 senhor, por exemplo, é celibatário,
como todos os sacerdotes católicos, que consideram o matrimônio
como um pecado mortal. No entanto, os antigos patriarcas,
que eram tão santos como os senhores, possuíram
mulher, e até mesmo muitas mulheres cada um. Se São Joaquim
não se tivesse casado, não teria aquela filha, que era uma santa
também . . .
0 sacerdote, assustado, interrompeu o diabo:
- Cala-te, pecador! . . .
É realmente perigoso falar contigo.
Obrigas-nos a incorrer em heresias... Se te parece bem,
casa-te.
-- Não é isto que espero do senhor.
- Que é, então, que esperas?
- Preciso de uma respostà que me possa servir sempre,
para todos os casos da vida, que não encerre em si nenhuma
contradição, e que me indique como devo proceder para não
cometer erros. Isso é o que necessito. Quanto ao matrimônio,
como não tenho pressa, esperarei um pouco. Entretanto, meu
padre, reflita. Concedo-lhe o prazo de sete dias. Se, transcorrido
êste prazo, o senhor não puder dar uma resposta clara e
decisiva, voltarei ao inferno, e o senhor não me verá nunca
mais.
Estava furioso o pobre diabo! Como sc, apaixonara pela
causa do bem!
0 velho sacerdote, compreendendo seu estado de alma, não
se zangou ao ouvir suas grosseiras palavras e começou a refletir.
Refletiu seis dias seguidos. No sétimo, chamou o diabo, dizendo-
lhe:
- És um diabo inteligente, e, no entanto, ao leres os livros,
escapou-te uma coisa muito importante. Olha aqui: vê o
que está escrito:
"Ama a teu próximo como a ti mesmo."
Bem
vês que não pode ser mais claro. Ama. A isto se reduz tudo.
0 sacerdote tinha um ar triunfal.
Mas o diabo não parecia nem um pouco entusiasmado, e
respondeu:
- Não; isso não está claro. Para provar o amor do próximo
é preciso fazer-lhe algum bem; mas como ignoro em que
consiste o bem, posso fazer-lhe algum mal, algum grande mal,
até mesmo arremessá-lo ao inferno. Além disso, não é nada
difícil isso de dizer que se deve amar ao próximo como a nós
mesmos . . .
- Como és exigente! Pois bem: ama o teu próximo simplesmente,
e não como a ti mesmo. Então compreenderás tudo,
e principiarás a praticar o bem, sem nenhum esfôrço de tua
parte.
- Amar! Como se isto fôsse tão fácil! É precisamente
o que não posso fazer. De que maneira quer o senhor que um
diabo ame? Compreenda, meu padre, que, sendo diabo por
natureza, não me posso sentir como um anjo; mas ao mesmo
tempo não quero fazer mal, antes, pelo contrário, pretendo
sòmente fazer o bem. Isto é o que desejo que o senhor me
ensine.
0 sacerdote respondeu-lhe tristemente:
- Por desgraça, tu, por causa da tua natureza, possuis uma
alma abominável.
- Claro! - confirmou o diabo. - Por isso quero lutar
contra minhas inclinações naturais. Não quero estar condenado
ao inferno para tôda a eternidade, pois aspiro ao céu, como
os anjos. Espero que os anjos não sejam os únicos candidatos
ao céu, não é verdade? . . . É preciso que o senhor me
ajude. Concedo-lhe, novamente, um prazo de sete dias. Se não
encontrar o senhor nenhum meio de salvar-me, acabou-se. Irei
para o inferno!
dias. 0 sacerdote chamou Passaram-se outra vez os sete
novamente o diabo, e lhe disse:
- Depois de largas reflexões,
ceitos muito práticos. Espero que
culdade em adotá-los. Está escrito
dem a camisa, dá-a,
ordena: "Se te dão
mente a esquerda."
meira prova. Logo veremos
muito simples!
0 diabo refletiu um pouco, sorrindo, depois, alegremente:
- Isto sim! Agora já sei o que é o bem. Não sei como
lhe agradecer...
Transcorreram outras
estava certo de que havia encontrado
do diabo. Mas logo êste voltou
triste do que nunca: estava com
sangue e de cicatrizes. Brilhava
misa completamente nova.
- Isto não dá resultado! -
- Que dizes? Que te aconteceu? - perguntou
o sacerdote. - É de se acreditar que brigaste com alguém.
Olha teu nariz... E teus olhos?... Ai! meu Deus! Tinhas
a intenção de praticar o bem e, ao invés, te entregaste a brigas...
Ou será que alguém te feriu?
Não! 0 caso é que eu briguei.
0 sacerdote respondeu-lhe tristemente:
- Mas, como? Não te havia dito: "Se alguém te dá
uma bofetada na face direita, oferece igualmente a esquerda"?
Não te recordas?
encontrei para ti dois prenão
tenhas nenhuma difino
Zvangelho: "Se te peembora
não tenhas outra." Outro preceito
uma bofetada na face direita, oferece igual-
Segue êstes mandamentos. Será a tua priresultado.
Hás de convir que 0
duas semanas. 0 velho sacerdote
o meio de
à sua casa. Mostrava-se mais
o rosto cheio de manchas de
no seu corpo escuro uma cadeclarou
com
salvar
voz
é
a alma
pesarosa.
assustado
- Sim, recordo-me perfeitamente. Estive, durante quinze
dias, passeando pela cidade, à procura de alguém que me esbofeteasse,
mas, como ninguém o fêz, me vi na impossibilidade de
cumprir o santo preceito.
- Mas não disseste que andáste a brigar?
- Isso é outro caso. Tive uma disputa com certo
êle me deu uma bengalada na cabeça. Naturalmente
devolvi a pancada. A discussão acabou numa verdadeira batalha.
Sem me ufanar disso, devo informar ao senhor que êle
não foi sem uma lembrança: quebrei-lhes duas costelas.
O velho sacerdote fêz um gesto
- Mas, homem! Eu te havia
face direita..."
Mas o diabo o interrompeu gritando:
- E eu digo ao senhor que não me deram na cara, mas
na cabeça. Se se tratasse do rosto, teria sabido como fazer...
O pobre sacerdote ficou completamente desnorteado. Afi.
nal, depois de um largo silêncio, disse ao diabo:
- Ai! meu Deus! Como és estúpido! Geralmente mostras
grande habilidade, e até mesmo regular erudição, mas no que
se refere ao conceito do bem, qualquer um o entende melhor.
Como não compreendeste que as palavras do Evangelho devem
ser interpretadas num sentido mais amplo?
- No entanto, o senhor mesmo disse que
terpretar os santos preceitos, e sim cumpri-los ao
não se deve ao pé
da letra! . . .
- Tu és um desgraçado! Que vou fazer agora contigo?
Não posso seguir-te por tôda a parte, para acautelar-te sôbre
os erros... É preferível que não saias à rua... E que quer
dizer esta camisa nova? Ganhaste-a, de presente?
--- Qual! Comprei.a para dar ao primeiro que ma pedisse.
Durante quinze dias estive passeando pela cidade, entre os
pobres. Pediram-me tudo que o senhor possa imaginar, menos
a camisa.
Provàvelmente ignoram o caminho do bem . . .
- Desgraçado! Mil vêzes desgraçado! - exclamou furioso
o sacerdote. - Mas não acabaste de dizer que te pediram
muitas coisas?
- Sim.
- Pediram-te, por
- Sim.
- E não lhes deste?
exemplo, pão?
de desespêro
dito: "Se te
senhor;
eu lhe
esbofeteiam a
- Não. Esperava que me pedissem a camisa... Vejo, meu
padre, que não faço senão asneiras. Não me repreenda o senhor,
se me engano ao procurar o caminho do bem. Quero
encontrá-lo, custe o que custar. Por algum motivo renunciei
ao inferno, como a todos os seus prazeres. Por algum motivo
passei, durante dois anos, os dias e as noites sôbre os livros,
devorando-os. Agora vejo que não existe salvação para mim...
- Espera, e não te desesperes. Vou ensinar-te ainda umas
tantas coisas... Diz-me, porém: por que deu aquêle homem
uma bengalada na tua cabeça? Talvez sejas uma vítima ino
cente e, nesse caso, uma parte dos teus pecados poderia ser
perdoada.
0 diabo fêz um ar de dúvida.
- Nem eu mesmo o sei. Antes, também acreditava ser
uma vítima inocente, mas agora já não sei mais nada. A coisa
ocorreu da seguinte forma: depois de longos passeios pela ci
dade, cansado e desesperado, mas ainda cheio do mais ardente
desejo de fazer o bem, sentei-me à margem do Rio Arno, para
descansar um pouco e restaurar as fôrças. De repente vi que
um homem se afogava no rio. Nostseus esforços desesperados
para se salvar, chegou muitas vêzes perto de mim.
- E tu, infeliz?
- Eu? Contemplei-o, perguntando a mim mesmo como era
possível que êle se mantivesse à tona da água, quando, segundo
tôdas as leis da física, êle já devia ter-se afogado. Enquanto
assim refletia, acudiu uma porção de gente, atraída pelos seus
gritos. Se o senhor quer saber a verdade, não foi um só que
me bateu, mas inúmeros . . .
Triste e abatido, cheio de feridas e cicatrizes, o diabo permaneceu
de pé ante o sacerdote. Èste contemplava-o atentamente,
com ar pensativo. Depois suspirou e, aproximando-se
dêle, atraiu-o para perto de si, beijando-lhe a fronte. Ao fazer
isso, percebeu que a cabeça do diabo estava coberta de sangue
sêco.
0 diabo, depois de haver recebido o beijo, disse com voz
assustada:
- Tenho mêdo, meu padre. Vi no inferno horrores sem
nome, mas jamais me senti tão perturbado e inquieto como
agora. Não há nada mais terrível do que aspirar apaixonada
mente o bem e não saber como êle é. Não consigo compreender
como podem viver as pessoas na terra, ignorando o que
é o bem. Com todo o meu coração, tenho piedade delas!
- Vivem, apesar de tudo - respondeu o sacerdote. -
Uns, como animais, sem se preocuparem com êstes graves pro.
blemas; outros procuram, corno tu, o caminho do bem e da
virtude, e sofrem porque não conseguem encontrá-lo. Outros,
ainda, crendo haverem encontrado o bom caminho, inventam
preceitos saudáveis e vivem perfeitamente com êles.
- E essa gente se salva? - perguntou o diabo, desconfiado.
- Só Deus o sabe! Isto vai além dos nossos conhecimentos.
Quanto a ti, não te desesperes. Eu não te abandonarei,
e te ensinarei ainda algumas coisas mais. Não me faltarão tempo
nem paciência para tanto. Tu és um diabo muito impulsivo,
mas não se deve perder a esperança. Agora, vai lavar as feridas
da cabeça.
Assim terminou a conversa entre o diabo e o sacerdote.
Ambos ignoravam que, precisamente no momento de beijar
o sacerdote a fronte abominável do diabo, ao mesmo tempo
que êste, por sua vez, se compadecia dos que desconheciam o
bem, se realizava êsse mesmo bem, que êles inutilmente buscavam.
Separaram-se. 0 sacerdote foi à procura de novos caminhos
que conduzissem ao bem. 0 diabo encerrou-se na igreja,
atrás das empoeiradas colunas, para ali se restabelecer dos feri
mentos, e esforçar-se por compreender os grandes e misteriosos
problemas do bem e do mal.
0 sacerdote começou, novamente, a ensinar o bem ao dócil
diabo. Isto, porém, foi a causa de uma nova série de aborrecimentos
para ambos. Dava o bom padre a seu discípulo
ensinamentos pormenorizados para as diferentes circunstâncias
da vida, e tudo caminhava bem, enquanto estas se apresentavam
justamente sob o mesmo aspecto, e na mesma ordem prevista
pelo professor.
0 diabo executava, não só zelosamente, mas com abnegação,
tudo quanto lhe era ordenado, dando provas de uma vontade
de ferro. Não obstante, o débil engenho humano não
podia prever tôdas as complicações da vida, e êle se enganava
a cada instante. Procedendo bem num caso, portava-se mal
noutro. Se um pobre lhe pedia alguma coisa de forma não pre-
vista pelo sacerdote, negava-a. Eram tão freqüentes êstes casos,
que o próprio sacerdote principiava a desanimar-se. Não suspeitava
que a vida tivesse tantos e tão variados aspectos, nem
que escondesse em si tantos e tão obscuros mistérios, e tantos e
tão inesperados problemas.
"De onde provém tudo isto?" - pensava quebrando a cabeça,
enquanto o diabo, sentado atrás de uma coluna da igreja,
curava as feridas, soltando suspiros dolorosos, e sem nada com
preender. Não só o diabo, mas também o servo de Deus não
conseguia compreender nada daquilo. E o velho padre conti.
nuava pensando: "Não haverá mais remédio senão permitir que
continue a comentar os preceitos, embora seja um tanto perigoso.
Ensinar-lhe-ia as leis gerais, e êle que as comentasse depois,
tratando de adaptá-las às circunstâncias."
Com suma docilidade o diabo se aveio com êste novo sistema.
Sentia-se alquebrado, quase sem energias, mas estava pronto
a todos os sacrifícios.
Até então todos os seus sacrifícios não lhe haviam servido
para nada. Batiam-lhe tanto, que só isto bastaria para fazer
dêle um mártir; mas ao invés de acontecer isso, as pancadas
não faziam mais que sobrecarregá-lo de novos pecados, pois
os que lhe batiam tinham sobradas razões para se enfurecerem
contra êle. Êle mesmo, aliás, o reconhecia, assim como o sacerdote
que o protegia. 0 pobre diabo, que jamais vira uma só
lágrima, aprendeu até a chorar. Chorava tanto, que sómente
por suas lágrimas e por seu fervoroso desejo de encontrar o
caminho do bem, merecia ser inscrito no número dos santos.
Quando o sacerdote anunciou ao diabo que daquela data
em diante lhe seria dado comentar os preceitos e adaptá-los à
vida real, tal como os compreendia, êle sentiu-se cheio de alegria,
e foi com certo orgulho que declarou:
- Agora, meu padre, o senhor pode ficar tranqüilo a meu
respeito. Já que o senhor permite que eu comente os preceitos,
não farei mais tolices. Tenho espírito firme e idéias po
sitivas; há muito tempo que não bebo álcool, e estou certo de
não mais me enganar. Sómente lhe peço que não me oculte
nada. Diga-me qual é a lei mais importante e mais grave da
vida. Principiaremos por esta, e depois o senhor me ensinará
as outras.
0 velho sacerdote pôs-se a procurar na sua memória e a
consultar tudo quanto havia lido e aprendido durante a sua
vida. Depois soltou um suspiro de consólo ~: disse:
- Existe uma lei como a que tu queres, mas tenho mêdo
de revelá-la, pois é perigosa. Tenho, porém, confiança na ajuda
de Deus. Presta atenção, para não cometeres nenhum êrro.
Olha!...
E abrindo um livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diabo
estas palavras, grandes e misteriosas:
NÃO TE OPONHAS AO MAL.
Ao ver estas terríveis palavras, o diabo ficou assustadíssimo,
perdendo todo o seu habitual orgulho:
- Tenho mêdo, meu padre - disse êle. - Estou quase
certo de cometer erros com isto.
0 sacerdote também estava assustado. E ambos, o servo
de Deus e o de Satã, cheios de terror, se contemplavam, reciprocamente.
- Apesar de tudo, experimenta! - disse, por fim, o padre.
- 0 que há de bom nesta lei é que tu mesmo não deverás
fazer nada, e, sim, deixar os demais fazerem contigo o que
bem quiserem. Permita-lhes procederem à vontade, e submete-
-te, repetindo sempre esta frase: "Perdoai-os, Deus Onipotente,
porque não sabem o que fazem." Estas palavras são importantíssimas.
Não as esqueças!
0 diabo se foi, novamente, à procura do caminho do bem.
Passaram-se dois meses sem que aparesse. Durante êsse tempo
o velho cura esperava-o ansiosamente a todo momento.
Finalmente êle regressou.
Havia emagrecido horrivelmente, e todo êle era apenas osso.
Estava faminto e sedento. Tudo quanto possuía lhe havia sido
arrebatado. Estava todo coberto de cicatrizes.
0 velho sacerdote sentiu certa alegria: tudo testemunhava
que seu discípulo não se havia oposto ao mal. No entanto, impressionava-
o dolorosamente a expressão de temor e de angústia
que se lia nos olhos do diabo.
Êste, respirando com dificuldade, e escarrando sangue, olhou
para o velhinho, a quem amava com todo o coração, e a velha
igreja, onde encontrara um refúgio sossegado, e desandou a
chorar perdidamente.
0 sacerdote pôs-se a chorar, também, adivinhando que suoedera
qualquer coisa de muito grave.
- Vamos! Canta-me os erros que acaso cometeste.
Não cometi nenhum - respondeu tristemente o diabo.
- Procedi de acôrdo com a lei que o senhor me ensinou,
me opor ao mal.
- Então, por que choras, fazendo-me também chorar?
-J Ah! meu padre! Antigamente não sofria, mas agora
sofro infinitamente. Talvez o que fiz, seguindo suas indicações,
seja verdadeiramente o bem, mas por que não me causa êle
nenhuma alegria? É impossível que aquêle que pratique o bem
não sinta alegria de espécie alguma. Se o senhor soubesse quanto
eu sofro! Sente-se, e tudo lhe contarei. 0 senhor mesmo
verá onde está o bem, e o que tenho feito.
sem
E o diabo contou minuciosamente como o haviam perseguido,
batido, saqueado e maltratado. Eis aqui o que lhe acontecera
por último:
- Achava-me deitado, meu padre, atrás de uma grande pedra
à beira da estrada. Vi que se aproximavam dois bandidos.
Do outro lado da estrada, e na mesma direção, vinha uma mulher
com um embrulho que parecia de valor, nos braços. Os bandidos
correram para ela e gritaram: "Dá-nos isso!" Mas a mulher
negou-se. Então um dos bandidos tirou sua espada...
- E o que fêz? - exclamou, com voz comovida, o sacerdote.
- Feriu com ela a infeliz mulher, partindo-lhe a cabeça.
Ela caiu, juntamente com o precioso fardo que levava nos bra.
ços. Quando os bandidos o desataram, viram que o tesouro
da assassinada era uma criança. Os bandidos puseram-se a rir
e um dêles, o que estava com a espada, segurou a criança por
uma das perninhas, alçou-a no ar e...
- Como? - perguntou, trêmulo o sacerdote.
- Atirou.a contra as pedras . . .
0 sacerdote se pôs a gritar:
- Mas tu, tu?. . .
Não fizeste nada para defender a mãe
e o filho? ...
Desgraçado!
Como não atacaste os bandidos?
- Com o quê? Antes do acontecido me haviam roubado
até meu bastão, única arma que possuía.
- Vamos ver! . . .
Uma vez que tu és diabo, deves ter cornos...
Devias atacá-los com os teus cornos! Na tua qualidade
de diabo, podias haver encontrado um meio de lutar contra
êles.
- 0 senhor se esquece, meu padre, que está escrito: NÃO
TE OPONHAS AO MAL?
Reinou um demorado silêncio.
Depois o sacerdote, pálido como
lhos, e disse, cheio de submissão:
- A culpa é minha!
dos os que assassinaram a
Espera um pouco,
doe nossos pecados.
meu
bo, com uma triste
por seu lado o que
seguir.
- Nada mais posso fazer! Para que te enganes outra vez,
e me faças pecar? . . . Não, meu amigo; basta. Acabaram-se
as regras! Já não existem mais regras que valham!
0 diabo ficou furioso.
se não existem
Não fôste tu,
mãe e o filho.
amigo: vou
A oração durou muito tempo.. tanto, que o diabo dormiu.
0 sacerdote despertou-o, dizendo:
- Estas grandes palavras não são para nós. Em geral,
não se necessitam palavras, nem leis. Vejo bem claro, que algumas
vêzes é preciso amar, mas vejo, também, que, algumas
vêzes, é preciso odiar. Em algumas ocasiões convém deixar-se
bater, mas há circunstâncias em que se torna necessário maltraos
demais. Êste é o verdadeiro sentido do bem!
- Nesse caso estou perdido - disse resolutamente o diaentonação
na voz. - 0 senhor pode fazer
lhe agrade; a mim, porém, dê-me leis para
- Mas
bem!
- Como?
de ocupar-me de ti há tanto tempo?
Não existe o bem?
um cadáver, caiu de joenem
foram
0 assassino fui eu ...
rogar a Deus que nos perregras,
é que
Então
Vai-te!
És um ingrato! . . .
sumir-se no mais profundo de- Mas o diabo, que parecia
sespêro, replicou:
- 0 que o senhor
tem do que se ufanar.
- É difícil ensinar o diabo.
- Se o senhor não possui fórças para
e porque o seu bem vale muito pouco.
- Cala-te, desgraçado, ou te porei na rua.
J Faça-o. Não me restará outro remédio senão
inferno.

os banditampouco
existe o
não é o bem isto
me ensinou é bem pouca coisa. Não
ensinar o diabo,
Reinou novamente o silêncio. Depois o diabo disse:
- Hei de regressar, por fôrça, ao inferno., meu padre?
Sua voz era tão triste e comovida, que o sacerdote se
doeu, e com um gesto de amizade lhe falou:
voltar ao
con-
- Perdoa-me que te haja ofendido, meu amigo. Quanto
ao problema do bem, vou fazer-te uma pergunta: tu és um diabo
curioso de tudo saber; provàvelmente visitaste inúmeros templos
e museus, e viste muitas obras de arte. Dize-me, agradaram-te?
0 diabo refletiu um pouco, e respondeu:
Umas sim, outras não.
- Mas as que apreciaste, foi por sua beleza, não é ver.
dade?
- Naturalmente.
- E ouviste falar que existem leis para a beleza?
- Sim, muito já se escreveu sôbre isso.
- Muito bem. Suponhamos, agora, que aprendeste essas
leis. Poderias criar algo de belo?
- Não basta conhecer as leis; necessita-se, também, ter
talento, e isso me falta.
- Eis aí! Mas então, por que, animal, pretendes praticar
o bem, sem talento para êle? Requer-se mais talento para o bem
do que para a beleza. 0 bem exige um enorme talento.
0 diabo contemplava com grande assombro o sacerdote.
- ótima saída! - disse. - 0 senhor exagera meu padre.
Se eu pinto um mau quadro não me mandarão por êsse
crime ao inferno ao passo que se quebro a cabeça a meu próximo
já não será a mesma coisa. Além disso ninguém me obriga
a pintar quadros. No entanto existe a obrigação moral de
fazer o bem. Mandam fazê-lo e não indicam de que maneira...
E se alguém se engana ainda o castigam.
- Não te dizia eu que para fazer o bem é preciso talento?
--J E no caso de não o possuir devo sofrer eternamente as
penas infernais não é isso?
0 sacerdote fêz um gesto desesperado dizendo:
- Não sei, meu amigo. Perdi a cabeça, falando contigo.
- Pois não me fale mais do talento. Dê-me regras ou leis.
Desejo fazer o bem, e o seu dever é ensinar-me como devo
fazê-lo . . .
Do
contrário . . .
Estava tão enfurecido, que ameaçou ir à casa de outro
sacerdote.
O velho pároco sentiu-se ofendido, e disse num tom de
censura:
- Portas-te mal, muito mal comigo. Sofri em tua companhia,
esperei trazer-te ao bom caminho como a ovelha desgarrada,
principiei a querer-te como a um filho, e tu pretendes
agora me atraiçoar. Eu também tenho amor-próprio, e não é
justo que o firas. Se não te parece mal, em lugar dessas regras
gerais, perigosas não sómente para um diabo, mas também
para um homem, vou traçar-te uma linha de procedimento, a
que te deves submeter todos os dias. Tenho muito tempo de
sobra, e começarei a trabalhar imediatamente. Farei, para ti,
uma espécie de agenda para todo o ano; nela encontrarás tudo
quanto deves praticar diàriamente. Mas não te deverás afastar
um milímetro sequer do que estiver escrito nela. Caso contrário,
cometerás novos erros. Se esqueceres alguma coisa, ou
tiveres dúvida a propósito de qualquer pormenor, melhor será
que nada faças, a expor-te a novas desventuras. Fecha os olhos,
tapa os ouvidos, não te movas e fica sossegado, pois, assim, pelo
menos, estarás livre de dar um mau passo. Hoje mesmo prin.
cipiarei a trabalhar, e tu subirás ao alto da igreja, e permanecerás
lá, quietinho. Se te aborreceres, auxilia um pouco o sineiro.
0 coitado já está velho e se esquece de tocar os sinos,
muitas vêzes. Toca, pois, para a glória de Deus!
0 velho sacerdote entregou-se ao trabalho com afinco, enquanto
o diabo principiou a não fazer nada. Instalara-se num
pequeno desvão situado na tôrre da igreja, entre os sinos, as
cordas e os trastes velhos. Uma das paredes da tôrre tinha na
sua grade superior uma janelinha cheia de teias de aranha.
Cada dois ou três dias o velho sacerdote levava ao diabo
um pouco de comida, sentando-se um instante ao seu lado, a fim
de conversar com êle. 0 resto do tempo o diabo não via ninguém
e não fazia outra coisa senão refletir. 0 sacerdote temia essas
reflexões, vendo nelas - e razão tinha êle - uma espécie de
ação, impelindo.o a cerrar hermèticamente o espírito do diabo,
não deixando que êle pensasse em nada. Éste prometia obedecê-
lo, porém isso era mais do que a sua vontade . Tornava-se
dificílimo não pensar no que havia visto e ouvido, no que consistia
sua idéia fixa, isto é, no bem. 0 bem possui tantas formas!
0 próprio Deus diz tão depressa uma coisa como outra!
Há inumeráveis verdades que se cruzam, entrechocam-se, batem-
-se umas contra as outras. Parece que se contradizem, mas na
realidade não é assim! Qual é. pois, a "verdade"? Ou, se tôdas
são verdades, corno distingui-las, e encontrar a que possa servir
melhor?
Tais pensamentos quase enlouqueciam o diabo, inspirando-
-lhe mesmo certo terror. Permanecia, durante horas inteiras,
imóvel no seu canto empoeirado, sem
sequer.
- Que há, meu
o velho sacerdote, ao
deves fazer nada! - prosseguia êle.
trabalho, e então começarás a viver.
saúde me traz cada mais apreensivo,
possível para concluir o trabalho
te posso deixar dessa maneira...
se
antes de
pareceu
reflexões.
ses tal pergunta, jamais havia pensado nisso
matava môscas... Agora...
mover,
não
sem respirar
arraigo? Aborreces-te? - perguntava-lhe
trazer-lhe a comida. - Paciência! Não
- Breve
É verdade que a minha
mas farei todo o esfôrço
minha morte. Não
terminarei meu
O diabo ouviu-o. No entanto,
alguma, tão absorto estava em suas
- Contradições por tôda a parte! - murmurou com
olhos cheios de espanto.
- Como? - exclamou alarmado o sacerdote. - Onde encontras
tantas? As contradições não existem senão no teu
espírito, que, sempre descontente, procura a lógica em tudo.
principal não é o espírito, mas a consciência. Isto, porém,
se vive com a consciência tranqüila! . . .
- Mas, por acaso a consciência não é guiada pelo espí.
rito? 0 senhor, meu padre, se contradiz.
- Oh! Santo Deus! Como és difícil de te contentares!
Cada conversa contigo me fatiga enormemente e acabo com dor
de cabeça. Devo, no entanto, conservá-la serena, pois, do con
trário, não poderei acabar o trabalho que estou fazendo. Para
dizer a verdade, és um diabo muito desagradável. Comfessa-me,
com franqueza, se obedeces exatamente às minhas ordens.
- Em quê?
- Ficas imóvel? Não fazes nada, absolutamente
- Sim. Ontem matei uma môsca, tão-sòmente porque me
aborrecia demasiado. Não sei se é ou não permitido matar
môscas...
- Môscas? . . .
Naturalmente! . . .
Isto é, espera urra pouco...
Estás vendo? Agora, eu mesmo ignoro se se pode ou
não matar môscas. Grande acontecimento! Antes que me fizese,
também eu,
perceber coisa
os
O
se
nada?
- A môsca é um ser vivo - disse o diabo com triste
acento.
- Quem o duvida? - respondeu comovido o sacerdote.
- Então, também eu matei sêres vivos!
Quão pecador sou! . . .
0 diabo, que procurava
tou-lhe
- Em resumo,
- Môscas? . . .
soluções claras
é lícito matar môscas?
e precisas, pergun-
Tais palestras perturbavam os dois. Ambos acabavam confusos
e, mirando-se reciprocamente, com olhares estúpidos, não
sabiam de que maneira prosseguir. 0 sacerdote não levava mui
to a sério essas contradições; de regresso a sua casa, esquecia-se
delas e punha-se, tranqüilamente, a trabalhar. Mas para o diabo
elas constituíam verdadeiro martírio. Cheio de fôrças diabólicas,
capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante
as môscas que o picavam e - corno uma criança - não sabia
de que modo portar-se com elas. Como se as môscas compreendessem
seu estado de alma, pareciam zombar e caçoar dêle:
zumbiam insolentemente ao redor de sua cabeça, metiam-se-lhe
nas suas peludas orelhas, faziam còcegazinhas nos seus lábios
cerrados, assumiam posturas provocadoras, desafiavam-no . . . 0
diabo havia odiado muito em sua vida, mas todos êstes ódios
não eram nada comparados ao ódio feroz que nutria pelas débeis
e insignificantes môscas...
0 sacerdote estava cada vez mais fraco... a saúde declinava
e as poucas fôrças diminuíam cada vez mais. Sentia-se
a todo instante tão cansado, que era obrigado a se deitar um
pouco. Há três anos que o diabo estava encerrado no canto
da tôrre da igreja, condenado a uma inação absoluta, esperando
pacientemente o programa do bem, que o sacerdote lhe havia
prometido. Não atormentava mais o professor com as suas contradições;
suplicava-lhe sòmente que
seu trabalho.
- Apresse-se,
- Não tenhas mêdo, amigo! Não morrerei sem concluir
minha obra. Segundo os meus cálculos, ainda me restam seis
meses de vida, pouco mais ou menos. Sim, seis meses! Meu
trabalho está quase terminado. Continua tranqüilo, e não percas
o ânimo. Vim precisamente para te anunciar uma boa notícia:
hoje vão queimar vivo um herege. Vem comigo para assistir
ao espetáculo. Isso nos agradará, e nos divertirá um pouco.
meu padre!
concluísse quanto antes o
Não obstante, está escrito nas Santas Escrituras: "Não matarás"
- pensou o diabo; porém, não disse uma palavra ao
sacerdote, e aceitou gostosamente a proposta, sobretudo porque
se aborrecia terrivelmente na solidão.
Há muito tempo já que estavam queimando o herege, e
o povo se divertia a valer. 0 diabo experimentava também
certa alegria porque aquilo lhe recordava o inferno. Mas lem
brou-se, repentinamente, da môsca, a qual não se atreveu a matar,
e as contradições começaram a desassossegá-lo. Olhou o
velho sacerdote e viu que êste, mantendo-se de pé à custa de
grandes sacrifícios, por causa de sua debilidade, estava pálido
de emoção; tremiam-lhe as mãos, nos seus olhos brilhavam lágrimas
de felicidade, e todo o seu semblante parecia iluminado
por uma divina alegria. No inferno, os diabos queimavam, com
freqüência, os pecadores, mas durante essa operação seus rostos
jamais exprimiam tão grande felicidade.
Ficou estonteado, sem nada compreender. 0 sacerdote estava
louco de alegria. Regozijou-se tanto com o espetáculo que,
de regresso à casa, foi obrigado a se meter no leito, tal era
a sua emoção. 0 diabo não se pôde conter, e entabulou conversa:
- Quisera saber. meu padre, por que se regozija o senhor
dêsse modo.
- Pois é muito natural: acabam de queimar um herege -
respondeu o padre com doce acento na voz.
- Esquece o senhor que está escrito nas Santas Escrituras:
"Não matarás"? No entanto, mataram um homem, e o
senhor se alegra!
- Ninguém o matou.
- Mas se o queimaram!
- Claro, meu amigo! Queimaram-no, graças a Deus.
Revirou os olhos, deliciado, e seu rosto expressou uma beatitude
tão cândida e inocente, como a de uma criança. O diabo
esfregava a fronte enrugada, com sua ampla e peluda garra,
e quebrava a cabeça para explicar-se esta nova contradição. "Não
entendo nada - pensava. - Provàvelmente tudo dependerá de
como se faça o bem."
E, com o coração opresso, resolveu ter paciência e esperar
que o sacerdote concluísse o trabalho. Mas não voltou ao seu
cantinho; permaneceu junto ao padre, como criado. Servia-lhe
a comida, arranjava-lhe o aposento, limpava-lhe a roupa e varria
o solo.
- Em tudo isso - dizia - não pode haver o menor
pecado.
Quando o sacerdote, vencendo sua crescente debilidade, se
assentava à mesa para escrever, o diabo esticava o busto largo
e musculoso, seguindo o trabalho com o olhar, temeroso de
que seu professor cometesse o menor êrro. Aquêle trabalho era
a sua única esperança.
Afinal, o manuscrito ficou pronto. A vida de seu autor
parecia acabar-se com êle. 0 sacerdote ià não podia levantar-se
da cama; nela foi obrigado a escrever, deitado, as últimas li
nhas. Eram irregulares e pouco legíveis, mas tornaram-se as
mais queridas para o diabo, precisamente por serem as últimas.
Ajoelhado ante o sacerdote moribundo, o diabo recebeu de suas
mãos aquela preciosa dádiva, e beijou com verdadeiro amor
a mão esquelética que a entregara.
- Estás contente? - perguntou-lhe o sacerdote. - Pois
eu também estou. Mas tem cuidado, para não praticares nenhuma
tolice!
- Agora estou seguro de mim - respondeu alegremente
o diabo. - Vou cumprir, palavra por palavra e letra por letra,
tudo o que está escrito aqui. A menos que o senhor não haja
cometido algum êrro! . . .
--J Sim; eu sei que porás muito zêlo nisso. Mas, pelo
amor de Deus! não percas o manuscrito, porque não encontrarias
outro... Onde pensas ir? Se não te distanciares muito,
vem ver-me de vez em quando. Sentirei falta de ti. Acostumei-
me tanto a ver-te! Antes, teu nariz parecia-me muito feio;
agora me agrada...
0 que é o hábito! . . .
Onde pensas ir? . . .
- Vou percorrer o mundo! - respondeu o diabo.
pena que o senhor morra logo. 0 senhor devia viver ainda
seis meses, pelo menos. Assim poderia contar-lhe muitas e boas
coisas. Ah! se o senhor soubesse como estou ansioso para fazer
o bem! Que lástima que o senhor não possa ver-me trabalhar!
0 diabo partiu, mas eis o que lhe aconteceu:
Em lugar de começar sua obra com juizo, conforme o programa
elaborado pelo velho sacerdote, apresentou-se no inferno,
para propagar o bem. Por que o fazia? Não se sabe. Talvez
tenha perdido a razão, de alegria, talvez movido pelo orgulho
e pela vaidade quisesse exibir-se perante os demais diabos, ou
talvez tivesse sentido a imperiosa necessidade de visitar o lugar
do seu nascimento. 0 caso foi que, apenas abandonou a
casa do sacerdote, encaminhou-se diretamente ao inferno, sem
a mínima hesitação. Qual foi o resultado da visita?
Apenas abriu a bôca para pregar um sermão, os demais diabos
plantaram-se diante dêle, e começaram também a pronunciar
sermões acêrca da necessidade do bem, até com mais ener
gia e eloqüência do que êle. Todos eram especialistas na arte
de mentir. Num instante tôda a verdade se transformou numa
as mais santas palavras, gritadas por aquêles lábios
desavergonhados. transformaram-se em abomináveis
mentira, e
impuros e
opróbrios.
Todo o inferno se encheu de predicadores
Satanás, alegre com esta nova diversão, se pôs
e, morrendo de rir, entoava cânticos religiosos
sa. Umas bruxas, velhas e repelentes, representavam
cujos assuntos eram a Verdade, o Bem e a Virtude.
Nunca, até então, nem nos dias de maiores festivais, teve
o inferno um aspecto tão infernal. Vieram depois cenas de
obscenidade, cheias de gestos impudicos e, por último, acaba
ram brigando, uns com os outros. Nosso diabo, que há muito
tempo havia perdido o costume da vida infernal, assim como
a fô.rça física e a habilidade, era maltratado e batido como nenhum
outro. 0 mais triste de tudo, porém, foi que, no curso
da luta, lhe rasgaram o manuscrito. Quando, depois de conseguir
livrar-se das mãos de um grupo de bruxas ébrias, deitou
sôbre o pobre manuscrito um olhar e o viu completamente rôto,
ficou quase louco de dor, e soltou longos e queixosos gemidos.
No seu desespêro, chegou a insultar o próprio Satanás. Êste deu
tais mostras de cólera, que o infeliz discípulo do velho sacerdote
se apressou a fugir. Corria com toda velocidade que lhe
permitiam suas pernas cansadas, apertando ao peito o manuse
de santos. E
diante de todos
com voz fanho
comédias
Grito despedaçado. Corria à casa do velho professor, para que
êste lhe desse outro. Mas o sacerdote estava moribundo.
- Espere o senhor um momento! - suplicava-lhe o diabo,
ajoelhando-se diante de sua cama. - Espera! Acabam de
rasgar o meu manuscrito! . . .
Durante dez minutos pelo menos, o diabo gritou, gemeu e
implorou, rogando que lhe trocassem por outro o manuscrito
rasgado. Depois, esforçou-se por tranqüilizar-se e, deixando de
lado o manuscrito, aproximou-se ainda mais da cama do velho
sacerdote.
Após um prolongado silêncio, êste abriu penosamente os lábios
ressequidos, perguntando com voz débil:
- Fizeste alguma nova tolice?
0 diabo lançou um olhar triste ao manuscrito esfacelado,
mas, para não afligir o moribundo, ocultou-lhe a verdade.
- Não é nada, meu padre, senão que vê-lo assim me enche
de pesar. É verdade que o senhor vai morrer? Ou o senhor
viverá ainda um pouco?
- Nem um só dia mais, meu amigo. Ontem fiz os meus
preparativos para a grande viagem; decidi, porém, esperar mais
um dia, com a ilusão de tornar a ver-te.
E aqui estás! . . .
Graças, meu amigo! . . .
Faze o favor de levantar a cortininha
da janela; quero olhar os arredores pela última vez.
Mas pela janela sòmente se via um cantinho do telhado
vermelho e um pedacinho do céu, onde pairava uma nuvem vagarosa.
0 sacerdote pôs-se a contemplá-la com alegria, enquanto
o diabo pensava: "Que olha êle? Não há nada a ver: o telhado
e um pedacinho do céu? . . . Será porventura a nuvem
que lhe causa tanta felicidade? ...
E teve uma idéia.
"Vou levá-lo ao alto do campanário: dali verá tôdas as
nuvens que passam no céu e todos os telhados da sua Florença..."
Assim fêz. Sem nada perguntar ao sacerdote, segurou em
seus braços musculosos o corpo frágil e extenuado dêste, e le-
vou-o, com muitas precauções, ao campanário, sôbre uma pequena
plataforma, da qual se descortinava o admirável pano.
rama da cidade e dos campos circunvizinhos.
- Agora olhe, meu padre. Isto é melhor do que olhar pela
janela. Aqui se aprecia uma vista mais ampla e mais bela.
Puseram-se ambos a olhar, cheios de admiração.
0 sol já estava quase escondido. Na margem oposta do
Rio Arno, sôbre uma elevada colina, distinguiam-se alguns ciprestes
negros, que pareciam prontos a perfurar o sol mortiço
com suas copas agudas. Na outra margem do rio, nos confins
do horizonte, estendiam-se as montanhas que, aos suaves reflexos
azulados do entardecer, pareciam diáfanas e fantásticas.
Tôda a formosa cidade estava como que rodeada de gigantescas
grinaldas de flôres perfumadas. Os povoados longínquos,
situados nas encostas das montanhas, pareciam florzinhas rosadas,
espalhadas aqui e ali. As sombras crepusculares perdiam-
-se entre as montanhas...
- Eu nasci atrás dessas montanhas, meu amigo! Ali está
minha aldeia natal. Ali amei uma linda criaturinha, mas renunciei
ao amor para servir a Deus. Durante inúmeros anos não
pude esquecer-me dela, nem da aldeia, e muitas vêzes olhei na
direção das montanhas, suspirando saudosamente.
0 sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu redor,
e se entregava a suas recordações. 0 sol desaparecia pouco a
pouco.
- Amo também Florença, esta formosa cidade, em que
vivi tanto tempo - continuou o sacerdote. - Agradava-me sentir
sob meus pés as pedras tépidas de suas calçadas. Ah! meu
amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna
em alguma coisa assim como nossa mãe, e até suas pedras perdem
a dureza... E isto que estou dizendo será ainda mais certo
ali, onde vou agora...
0 diabo soltou um suspiro; o sacerdote, que continuava
em seus braços, sentiu-o; compreendeu a dor do diabo e lhe
disse com moribunda entonação:
- Não suspires... Não te desesperes... É muito possível,
meu amigo, que também vás ao Paraíso... porque és...
um diabo... muito bom...
0 sol verteu manchas sangrentas pelo, céu, empurrando o
horizonte e extinguindo-se. 0 velho sacerdote extinguiu-se com
o sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e tôdas aquelas
terras, que tanto amava.
Desesperado, o diabo esforçava-se por despertá-lo, falando-
-lhe com voz rude e áspera:
- E as estrêlas, meu padre? 0 senhor não admirou ainda
as estrêlas! 0 senhor não viu ainda a lua, que está quase a
surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante, sua pálida
luz sôbre as lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu
padre, e olhe! Suplico-lhe...
Quando compreendeu que tudo estava findo, e que o amigo
e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para
sua alcova. E enquanto o levava, em seus braços, pensava:
"Subi com êle vivo ao campanário, e o desço morto!.. . "
Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo. Agitava-
se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, arrepelando
os cabelos: não estava acostumado à dor humana, e ma
nifestava-a de forma ridícula. Tão grande era o seu desespêro
que, apanhando seu único tesouro - o manuscrito despeda.
çado - o atirou a um canto. No entanto, ao fazer isso, não
compreendeu que, precisamente naquele mesmo instante, se realizava
o bem, êsse bem intangível, que êle procurava com tanto
afã e à custa de tantos e tão grandes sofrimentos. E não o
compreendeu em tôda a sua vida.
Aquêle precioso manuscrito tinha um aspecto muito desagradável.
Rasgado, maltratado, com as fôlhas engorduradas pelas
garras dos demônios que o tocaram, achava-se ante os tristes
olhos do nosso diabo, que envelhecera muitos anos num só dia.
Abriu-o com mão trêmula, na primeira página, e mergulhou
largo tempo no estudo das linhas cuidadosamente escritas. À
medida que ia lendo, seus olhos exprimiam espanto e incompreensão.
Ao terminar estava fora de si, de tão surpreendido
e assustado. Até então, nunca, nem nos momentos mais difíceis
de sua vida, teve o diabo um ar tão estúpido e assombrado.
0 manuscrito inteiro parecia-lhe uma pilhéria de mau gôsto.
Dir-se-ia que o velho sacerdote zombava do bem e do pobre
diabo, que tão ansiosamente aspirava à virtude. Também o
sacerdote havia, com certeza, perdido o juizo nos seus últimos
dias, porque, recordava-se agora o diabo, balbuciava, com a
gravidade de uma criança que diz cândidas simplicidades, coisas
néscias, atribuindo grande importância às coisas mais insignificantes.
De qualquer forma êle via, claramente, que o haviam en.
ganado. Perdeu sua última esperança e sentiu-se furioso.
Todo o manuscrito. da primeira à última página, estava
composto de curtas prescrições, que diziam, semana por semana,
dia por dia, hora por hora, o que o diabo teria de fazer.
Não havia nêle uma só lei geral, nem uma só regra, nem um
só princípio. A palavra Benti, tampouco era mencionada, uma
única vez. Nêle figurava simplesmente a descrição minuciosa
do que se devia fazer em tal dia e a tal hora. 0 manuscrito
parecia-lhe, portanto, mais do que qualquer outra coisa, com
um livro de receitas.
0 que mais dolorosamente impressionou o diabo, foi não
ver em todo o manuscrito nem uma só das formosas verdades
que a Humanidade recolheu durante milhares de anos, e que
estão destinadas a embelezar o bem. Êle mesmo conhecia inúmeras
delas; esperava, com razão, que o velho sacerdote - que
tanto estudara - colocasse grande quantidade destas verdades
em sua obra. Mas não pusera uma que fôsse.
Subitamente um raio de esperança iluminou seu coração.
Havia-o feito calculadamente o velho sacerdote. para que o diabo
deduzisse por si mesmo as conclusões gerais? 0 velho sacerdote
era muito malicioso...
0 diabo pôs-se a trabalhar. Examinou palavra por palavra,
letra por letra, com minucioso cuidado. Copiava, comprovava,
comparando os textos, esforçando-se por se apoderar do fio sutil
e apenas perceptível, que conduzia ao bem. Se o fio se que.
brava, esforçava-se por juntar as extremidades. Não se cansava,
nem se irritava, esperando sempre chegar às conclusões
necessárias, às regras do bem, regras que iriam servir para
todos os povos e para tôdas as épocas. Não era ambicioso, mas
às vêzes dizia consigo, com certo orgulho, que talvez traba=
lhasse para a Humanidade. Julgar-se-ia sua obra., reconheceriam
o mérito do seu trabalho, e seria erigido um templo novo e
magnífico em sua homenagem! . . .
Impossível descrever o seu desespêro e o seu horror, quando,
depois de terminado o trabalho. núda encontrou, absoluta.
mente nada. Nem uma idéia geral, nem uma verdade concludente,
clara, indiscutível! . . .
Não matarás; porém, se fôr necessário, mata.
Não mentirás; porém, se fôr preciso, mente.
Dá tudo o que tens ao próximo; porém, algumas vêzes,
tira-lhe o que possua.
Não cometas adultério, ainda que, a rigor, possas cometê-lo.
Não cobices a mulher do teu próximo; porém, se não há
outro remédio, podes tirar-lhe sua mulher, seu escravo e seu boi.
E assim por diante, em tudo o mais. Quase não havia uma
só prescrição do manuscrito, que não fôsse desmentida páginas
adiante. Em seus esforços para chegar a conclusões gerais
e claras, o diabo encontrava a cada passo mil contradições.
0 mais terrível era que o sacerdote admitia, prescrevendo mesmo
em alguns casos, os assassínios e as mentiras, com uma serenidade
desconcertante.
Quer dizer que sempre estêve a me enganar! - exclamou
o diabo pesaroso.
Instintivamente uma idéia medonha passou por sua cabeça.
Imaginou que o sacerdote fôra um grande pecador. Porventura
fôra Satanás em pessoa que havia querido achincalhar o
diabo?! ...
Encolhido num canto, dizia para si, cheio de terror:
- Sim... sim...
É êle . . . é Satanás! . . .
Sabedor de que
procurava o bem com todo o meu coração, disfarçou-se em sacerdote,
como eu me disfarcei em homem, e me perdeu para
sempre. Não reconhecerei jamais a verdade, jamais compreenderei
o que é o bem. Serei desgraçado para todo o sempre!
Desgraçado e maldito! . . .
Esperou que a porta se abrisse e que Satanás nela se mostrasse
com a bôca escancarada no seu riso alegre e ruidoso.
Satanás o perdoaria, e o convidaria a voltar com êle para o inferno.
Mas Satanás não apareceu e a porta continuou silenciosa.
Depois de haver refletido, o diabo disse com os seus botões:
- Viverei no desespêro, fazendo o que ordena êste manus.
crito, sem saber jamais o que é o bem! Estou maldito para
todo o sempre!
Foi envelhecendo cada vez mais. Quando, de acôrdo com
o manuscrito, precisava salvar alguém, salvava; quando era preciso
matar, matava. Pouco a pouco se habituou, tranqüilizan
do-se. Cumprindo ao pé da letra tudo o que ordenava o manuscrito,
chegou até a sentir certa alegria. Apesar da certeza
de estar maldito para todos os séculos, mal se desgostava com
isso. Deixou, mesmo, de pensar no bem. Passava, no entanto,
algumas vêzes, por situações difíceis. Isso acontecia quando o
manuscrito, meio destruido, interrompia-se e o diabo ficava sem
saber o que havia de fazer em tal ou qual dia. Subia, então,
ao campanário e ali permanecia horas e horas, dias inteiros,
sem fazer nada, em plena vagabundagem. Os olhos fechados
para não ver, os ouvidos tapados para não ouvir, permanecia
imóvel como uma estátua. Suas mãos, capazes de derrubar
montanhas, estavam cruzadas sôbre o peito, condenadas à impotência.
Sua abundante cabeleira tornara-se completamente
branca. Ao vê-lo, quieto e inerte, na velha igreja de Florença,
ninguém diria ser mais aquêle mesmo diabo um ser vivo, condenado
ao sofrimento; acreditar-se-ia, mais fàcilmente, tratar-se
de qualquer vetusta coluna, à qual ninguém, até êsse momento,
tivesse prestado atenção.
Transcorriam assim as horas e os dias, sem que êle fizesse
o mínimo movimento, numa inércia absoluta. As môscas pas.
savam no seu rosto e metiam-se-lhe pelos ouvidos e pela bôca;
um pó cinzento cobria-lhe todo o corpo; as aranhas teciam suas
teias sôbre sua cabeça...
E ali continuava, sempre imóvel, aquêle pobre diabo velho,
tão amante do bem.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Quero escrever sobre SURPRESAS...Apresentação.


" Sinto falta dela - Eu dizia para a paredeO silêncio e a falta de respostas me angustiavam (paredes são boas ouvintes, mas eu queria que fossem conselheiras também). Naquele quarto vazio eu só conseguia escutar a minha própria respiração lenta, e ao mesmo tempo angustiada.Eu queria te-la de volta, mas eu sabia muito bem que não havia nada que eu pudesse fazer. E nunca haveria. As lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto e caiam em meu lençol branco como a neve. O mundo girava devagar, quase parando enquanto as cenas de minha vida inteira passavam pela minha mente, até chegar o momento que meu mundo caiu e eu me vi sem chão. O momento que o calor virou frio e a multidão virou vazio.- Eu sinto realmente falta dela.(...) e eu sei que só o tempo ameniza essa dor, e que ela está perto de mim. Sempre estará.Texto que eu escrevi faz algum tempo já. Para a minha estrela." escrito por Julia Davidovic, minha filha de 14 anos.

Não consigo ler, lembrar, ou falar nesse texto sem chorar. Ele foi feito para minha mãe que nos deixou, ou melhor, virou estrela. A grande surpresa, a triste surpresa, aquela que ninguém quer receber, veio acompanhada de uma linda supresa.Ter ao meu lado duas estrelas tão brilhantes com sentimentos tão puros.
Apresento a minha surpresa Júlia, a estrela brilhante na minha vida... Obrigada por iluminar o meu caminho.

( Ainda tenho a estrela primeira, que irei apresentar a seguir, a Eduarda)
(isso para não haver ciumes)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Um gato chamado Leonardo di Caprio


Essa é a história desse gato acima, lindo e azul, pode gato azul?

Pois é, tinha que se chamar Leonardo di Caprio, Leo para os íntimos, que se diga a verdade, são pouquissimos, eta gato metido.

Mas...eu me vingo, o danado de bonito é carente toda vida...pois é, o ser tão belo e de poucos amigos é carente e sensível,sabe quando estou triste, chora mia do meu lado, como se falasse: posso sentir o que voce sente. "Companheiro, dessa minha melancolia..."

Ops!!! Era para ser a história dele, o gato que pensa que é cão, ou gente. Que se apaixonou por uma cadelinha chamada Sophia, e cuidou dos filhotes dela mesmo antes dela ficar viuva, que faz xixi no tapete, que quer ser soberano, mas que apaixonou pelo Fernando, aliás o único homem que ele aceita. De "gato" tem tudo, mas de gato tem pouca coisa, até rosna, resquicios de sua convivencia com a Sophia.
Eta gato doido!!! Metidooo, carente, mas belo, um Ingles de pelo azul que chegou na minha casa em forma de bolinha que me fez ficar trancada de medo dele, mas que agora faz parte da minha familia e, na verdade é o nosso vira lata, mas que se chama Leonardo di Caprio. Não precisa dizer mais nada.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Boas Entradas e Boas Saídas!!!!


Acho muito engraçado essa frase: " Boas entradas" , as pessoas costumam desejar a cada ano, então como de costume... fiquei pensando sobre isso e, ainda bem que tenho um blog para escrever minhas divagações, por que não desejar "boas saidas" junto as entradas, é importante sair bem do que se está passando.


Sair de um ano é como sair de um emprego, um relacionamento, é preciso sair bem para entrar bem em outro. As coisas bem resolvidas, as tarefas bem resolvidas. O ano não pode deixar nada por fazer, não devemos deixar pendências, deixar para o outro o que não conseguimos resolver.

é dificil mudar, começar um novo "tudo" com ranso do outro, mas para isso temos que zerar da maneira mais bem civilizada, educada consigo mesma, sem broncas, sem inveja, sem tristezas, sem presas, totalmente livre para mudar e COMEÇAR, para isso, é preciso ter BOAS SAÍDAS, vocês não acham?
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia…e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”Fernando Pessoa

!!!FELIZ 2008!!!